Como citar: 

MATTOS, Rafael da Silva; PERFEITO, Rodrigo Silva; CARVALHO, Maria C. V. Soares; RETONDAR, Jeferson. Obesidade e bullying na infância e adolescência: o estigma da gordura. Demetra; 2012; 7(2); 71-84



Obesidade e bullying na infância e adolescência: o estigma da gordura 



             Resumo

Este artigo tem como objetivo identificar as representações simbólicas do bullying atribuído às crianças e adolescentes que apresentam obesidade. Através de estudos socioantropológicos, é possível interpretar dados que sugerem o processo de criação do estigma por meio de sinais de depreciação, humilhação e preconceito no âmbito escolar a partir do excesso de gordura no corpo. Dessa maneira, é importante refletir sobre como os atores se situam nesta trama social e quais são as possíveis repercussões perante o aluno vítima, assim como o aluno agressor. O aluno inferiorizado tem sua identidade construída intersubjetivamente como estigmatizada. Concluímos que o preconceito atribuído às crianças com obesidade infantil é fundado em construções sociais e culturais em torno de padrões de beleza e da patologização do corpo. Cabe aos educadores e profissionais de saúde construir não formas de normatizar o corpo saudável, mas de intervir de forma ética e responsável nessas situações.

           Palavras-chave: Bullying. Obesidade Infantil. Estigma.


            Abstract

This paper aims to identify the symbolic representations of bullying given to obese children and teenagers. Through socio- anthropological studies it is possible to interpret data suggesting the process of stigma creation by signs of deterioration, humiliation and prejudice in school ambit from the excess of body fat. Thus, it is important to think over on how the actors situate themselves in this social plot and what are the possible repercussions against the victim student, as well as the offender student. The inferiorized student has his identity built intersubjectively as stigmatized. We conclude that the bias given to children with childhood obesity is founded on social and cultural constructions about beauty standards and the body pathologizing. It is up to educators and health professionals not to build ways to regulate the healthy body, but to step in ethically and responsibly in these situations.

          Key words: Bullying. Childhood Obesity. Stigma.


          Introdução

      Em junho de 2011, a Revista Veja Rio publicou uma reportagem sobre um aluno que sofreu bullying no Colégio São Bento.* O caso gerou grande repercussão na mídia, pelo fato de o Colégio São Bento ser um dos melhores do Brasil, pois anualmente encontra- se na primeira ou segunda posição do ranking do ENEM. A exposição midiática também foi influenciada pelo anterior massacre de Realengo, sobre o qual a própria Veja fez uma reportagem especial em sua edição do dia 13 de abril de 2011. Não faltaram especialistas afirmando que o assassino das crianças na escola de Realengo era um psicopata que sofrera bullying na infância e adolescência.
     Não há nenhuma grande novidade nesses casos. O massacre de Columbine, que ocorreu no Colorado, Estados Unidos, como tantos outros casos, exemplifica como atitudes preconceituosas em relação aos demais podem ter um final trágico. Nenhuma teoria é capaz de explicar ou provar se esses casos foram causados pelo bullying, embora todos estejam, em parte, relacionados. O bullying é o ataque à alteridade. Todos já sofreram algum tipo de bullying. Uns passam pela experiência como vítima e outros como algozes. Enquanto alguns têm sua subjetividade completamente desorganizada e levam os traumas para a vida inteira, outros conseguem superar e seguir uma vida considerada saudável. Não podemos negar que carregar dentro de si a dor, as lembranças e os afetos inconscientes das humilhações e constrangimentos podem causar inúmeros prejuízos na vida de uma pessoa.
       A violência escolar sempre existiu, apenas não tinha o nome de bullying. O tema está tão na moda que já existem estudos sobre o cyberbullying1-3 Podemos afirmar, nesta introdução, que o bullying é produto de discursos e práticas que produzem objetos num contexto histórico e social específico. Tal compreensão se fundamenta nos métodos genealógicos de Nietzsche, Foucault e Latour. O objetivo deste artigo não é realizar uma genealogia do bullying, embora reconheçamos que isto seja necessário num momento futuro.
        Quem é a vítima de bullying? Seria o desviante,4 o estigmatizado5 ou o anormal6-8? É claro que é isso tudo e algo mais.
        Em uma sociedade bioascética,9 isto é, onde a ascese mais valorizada é corporal e as identidades são predominantemente somáticas, é de se esperar que ocorram casos de bullying relacionados à aparência corporal. A obesidade infantil talvez seja o fenômeno social que mais agrega vítimas e algozes. Assim, o objetivo deste artigo é identificar as representações simbólicas do bullying atribuídos às crianças e adolescentes que  apresentam obesidade.
     Se antes o Brasil – e outros países – tinha como meta erradicar a desnutrição infantil, hoje o problema de saúde pública é a obesidade infantil e se torna relevante pensarnesta questão levando em conta aspectos interdisciplinares das ciências humanas e sociais.


        Alimentação e obesidade infantil

       Por mais natural que pareça dizer que uma criança é “obesa porque come muito”, é de se esperar que, através de uma reflexão, possamos esclarecer alguns acordos sociais e simbólicos expressos neste enunciado. Na vida em sociedade nos deparamos com uma ordem consentida, em torno da qual será construído um universo simbólico em torno da gordura corporal. Não é preciso interditar a gordura, ela já porta um valor negativo nas relações
sociais** e, embora isso não se ensine na escola, essa distinção ao “contrário” opera como um critério de classificação e organização.
      Uma das perguntas que guiam este texto é: qual a alimentação que está associada à obesidade infantil e como analisar essa relação sem dissociar teoria e prática? Ressaltamos dois aspectos: o primeiro, de que os significados de um corpo gordo constroem sentidos para a vida dos sujeitos de forma processual – a cada momento em que são construídos. Na infância isso fica muito mais evidente por conta das transformações estéticas com o crescimento e desenvolvimento maturacional do  corpo.
     Com a oferta abundante no mercado comercial de uma “cara nova” para o consumo, muitos significados do “muito” se transformam em ritmo acelerado, ajudados pela mídia, embalagens e popularização dos preços de alimentos. Por exemplo, os adoçantes dietéticos e alimentos diet ou zero buscam responder ao muito com o pouco ou o nada, e em poucas décadas mudaram sua imagem, passando de alimento refinado e caro das camadas médias e altas da população, para alimento popular e barato para emagrecer.
       O segundo aspecto é que os sentidos da alimentação são plurais, perpassam vários elementos sutis presentes na relação entre os sujeitos: elementos invisíveis que demandam certo cuidado e reflexão na sua análise e interpretação. Os elementos “invisíveis” podem nos ajudar a compreender como cada um constrói em sua realidade a ideia do equilíbrio saudável, relativizando as verdades através das relações sociais de um contexto para outro, com criatividade e respeito às diferenças.
      Sugerimos uma reflexão sobre a violência simbólica e que hoje se convencionou chamar de bullying. Um aspecto dessa violência é a imposição de uma “normalidade” social, expressa nas dietas restritivas como estratégia terapêutica, que seguem o modelo de uma curva de crescimento para a infância e adolescência. Este é um padrão idealizado de crescimento que reproduz um habitus preventivista perigoso no sentido que pode comprometer a potência para ação dos sujeitos.
        Essa padronização idealizada no comer no imaginário social tem um caráter polissêmico, que faz com que se refira a significados diferentes dependendo do contexto: nem sempre duas pessoas conseguem ver o mesmo desequilíbrio. Algumas fundamentações teóricas  orientam a construção de sentidos e concepções de alimentação equilibrada ou saudável nos contextos. Por exemplo, podemos nos apropriar da tese de Canguilhem10 sobre o conceito de saúde e dar outro significado à obesidade, que não aquele de doença, fundamental para sustentar o modelo preventivista das políticas de saúde dos anos 1970 até hoje.
       O exagero de ações preventivas se articula com o idealde medicalização e com o mito de que cada uma das nossas doenças tem um remédio associado. Muitas vezes a comida cumpre essa função de remédio e carrega uma promessa de milagre, ou de retorno a um normal, a uma saúde ideal. A concepção de normal é relativa, é uma construção que se realiza “invisivelmente” na cultura local. A obesidade é um modo de estar no mundo que representa um tipo diferente de normalidade, ainda que inferior em uma escala de valores. Nesse sentido, um sujeito considerado obeso pode ser saudável se ele for capaz de construir novas formas de vida e de comer que o favoreçam em sua convivência com essa normalidade inferior, ocasionada por limitações – que podem ser vasculares e metabólicas – e na interação do sujeito com seu ambiente, estabelecendo o que é saudável para ele. O emagrecimento ou a manutenção do peso, no caso da criança que está em crescimento, impõe condições específicas a sua vida que tanto podem ser criativas e inovadoras, quando consentidas, como uma violência simbólica quando impostas à revelia do sujeito.
       Por um lado, a capacidade humana de adaptação é uma ação consciente ligada à potência. Por outro, a passividade pode nos levar à servidão, e se não reconhecermos no poder do discurso o que nos domina ou muitas vezes nos paralisa, ficamos reféns de violências. Mecanizados, estaríamos reagindo, respondendo aos estímulos sem pensar, alienados de nós e da nossa potência ativa e criativa na alimentação. A passividade pode nos impulsionar a um círculo vicioso de dependência de normas sanitárias e de soluções para o comer que funcionam como bengalas, e não como varinhas para que o sujeito possa ele mesmo pescar seu peixe.
        Reduzir as necessidades alimentares a uma quantidade de nutrientes é reduzir a potência para fazer uma alimentação favorável dentro de um contexto, como se deseja hoje, no longo prazo, para enfrentar doenças crônicas como a obesidade. As políticas de alimentação devem operar como um guia alimentar e abrir negociações e acordos consensuais dos sujeitos em suas condições de vida, promovendo adaptações e não restrições.
       A diferença é sutil e mutante, e esse é o ponto central desta reflexão: é estranhar aquilo que parece natural e, conhecendo em detalhes o modo como foi se tornando natural, compreender aqueles elementos que dão força e poder a esse caráter natural das curvas de crescimento das crianças e adolescentes, que assume lugar de verdade indiscutível, reproduzindo violência simbólica. Analisando o contexto do comer na obesidade infantil na sociedade contemporânea, é possível observar que o ajuste do comer é singular com o gosto, e deve estar menos dominado por um modelo único de saber, livre da violência hoje denominada de bullying.
        O termo obesidade é complexo e “não traz em si a exigência de ser sempre o mesmo, mas de ser explicitado de modo que possa ser operacional no contexto em que está sendo utilizado.”11 A comida representa uma riqueza para o homem e é capaz de expressar, ao longo de sua história, a constituição das estruturas sociais desde o momento em que ele se diferenciou dos outros animais,   ao prepará-la e socializá-la, dividindo o trabalho para consegui-la.12 A vida social se organiza em conjunto com a alimentação, não somente como expressão dessas estruturas sociais, mas também como uma criação histórico-cultural capaz de convencionar a atribuição de significados que possibilite a comunicação.
       Podemos compreender as práticas de alimentação como um núcleo de significação complexo, uma expressão sociocultural de significados que (re)produz códigos de identificação para as pessoas em seu contexto social. Comer é uma experiência social que envolve trocas simbólicas, acordos e negociações constantes sobre o significado dos alimentos em uma cultura.
       A prática alimentar, em seu caráter social, é um acontecimento compartilhado capaz de expressar uma variedade de elementos de significação como costumes, usos, tradições, mecanismos de controle, instruções e regras. Por exemplo, o ato de gostar de uma comida pode estar ligado a gestos, sorrisos, carinhos ou mesmo à hostilidade e repugnância. A alimentação é uma construção, uma apropriação de símbolos que constitui uma experiência pedagógica na cultura em função de sua forma pública e reproduzível, seja ou não para o bem. Aprendemos a comer e a significar os alimentos em comunhão. Nos termos de Geertz13:

O que a briga de galo diz, ela o faz num vocabu- lário de sentimento – a excitação do risco, o deses- pero da derrota, o prazer do triunfo. Entretanto, o que ela diz não é apenas que o risco é excitante, que a derrota é deprimente ou que o triunfo é gratificante, tautologias banais do afeto, mas que é com essas emoções, assim exemplificadas, que a sociedade é construída e que os indivíduos são reunidos. Assistir às brigas de galos e delas par- ticipar é, para o balinês, uma espécie de educação sentimental (p. 2010).

      O alimentar-se vai além de uma questão f isiológica de necessidade de nutrientes, e constrói costumes, acompanha ritos de passagem, liberta os espíritos e sela relações entre as pessoas e entre elas e a coletividade. Antes de comer, é preciso apreciar com os olhos, sentir o aroma, a textura, discernindo bem as características, nos diversos ingredientes e condimentos da culinária local. A comida, seja simples ou mais sofisticada, significa, comunica e evoca algo que é possível decifrar e identificar porque foi apreendido de algum modo através da cultura.
Não pretendemos nos aprofundar na teoria de Weber,14 que organiza os tipos de ação social, mas utilizar seu conceito de ação social em relação à produção de sentido da própria ação, que de nenhuma forma pode ser sempre especificado com absoluta clareza, nem é sempre consciente, nem muito menos plenamente consciente.
        Segundo Weber14,15 mesmo sem nos darmos conta do sentido de nossas condutas sociais, ou relações sociais, buscamos comungar um sentido, tenha este existido, exista ou ainda possa existir, e a cultura é um espaço social de comunhão de sentidos e de trocas simbólicas.
    Observamos um modo de “arrumar” o universo simbólico nas práticas de alimentação contemporânea que podemos denominar (tese) de bricolagem alimentar: uma adaptação do pensamento selvagem de Lévi-Strauss,16,17 uma espécie de “faça você mesmo com o que tem para ser feito”. Desde há muito utilizamos essa estratégia de ir misturando coisas pra fazer uma combinação que em algum momento várias pessoas vão gostar. A cultura alimentar contemporânea abriga uma construção de significados que podem seguir diferentes “éticas”, modos de ser, e assumir diferentes interesses e políticas. Pode reproduzir desde a mais perversa apropriação de um símbolo em proveito próprio, de lucro, até a mais genuína expressão de uma estratégia social de sobrevivência e sustentabilidade na desigualdade social. Dependendo das leis mais ou menos específicas e das sutilezas sobre as quais já falamos anteriormente, um arranjo simbólico pode constituir uma forma específica de adaptação das políticas de alimentação e nutrição para ações em saúde no contexto local.


        O estigma da obesidade infantil

     Atualmente, uma das palavras mais escritas ou faladas no meio acadêmico e na sociedade se chama bullying. Ocorre uma generalização do termo sem que tenhamos qualquer cuidado em refletir sobre sua repercussão e construção social ao longo de anos. Discutir a temática atribuindo-a simplesmente a qualquer ato de violência ou superioridade, ou ainda, devido a apelidos jocosos disparados a terceiros não nos embasa para adentrar em discussões ou emitir qualquer tipo de conceituação sobre o tema.
     Uma maneira apropriada de tratar o bullying seria fazer uma genealogia, tal qual proposta por Nietzsche18 e, posteriormente, por Foucault.19 Analisar os conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana, suas características biológicas fundamentais se tornarão políticas numa estratégia geral de poder.
     O discurso e as práticas que produzem e ratificam o imaginário em torno do bullying estão imersos em relações de poder e saber, que se implicam mutuamente, ou seja, enunciados e visibilidades, textos e instituições. O bullyign pode ser compreendido como uma prática discursiva que se inscreve no interior de várias formações discursivas e de acordo com um regime de verdade, o que significa que estamos sempre obedecendo a um conjunto de regras, dadas historicamente, e afirmando verdades de um tempo. Exercer uma prática discursiva significa falar segundo determinadas regras, e expor as relações que se dão dentro de um discurso, afirma Foucault.20
     Faz-se necessário, desta forma, um diálogo através das representações simbólicas que, para Retondar,21 são construções filosóficas é que traçam possibilidades e limites que permitem palpar o mundo, o saber, a ideologia e a arte. Não consente significar a ideologia, mas sim perceber que as representações são um produto da cultura, e por isso, totalmente passíveis de aprendizado e modificações, que são moldados por símbolos criados e sentidos pela vida na sociedade. Tais representações, quando por meio do bullying, inscrevem marcas depreciativas nos indivíduos da sociedade, sejam estes pertencentes à escola ou a qualquer outro local social.
      Sendo assim, nosso diálogo entre o preconceito e a obesidade ocorre por meio dos sinais e símbolos que ocasionarão a estigmatização de terceiros, depreciando suas identidades sociais virtual e real. Aquela, segundo Goffman5 , diz respeito a como o indivíduo se vê e se reconhece na sociedade.
Pode ser totalmente adversa à identidade social real ou não. É uma identidade que leva em conta todos os problemas causados por estigmas, como medo e a apreensão de como as pessoas o veem. É a autoimagem reconhecida pelo indivíduo, que, por sua vez, pode modificar a identidade social real, podendo ser entendida como a identidade que realmente pertence ao sujeito, independentemente de seu desejo e de sua identidade social virtual ou representativa. É como a grande parte da sociedade o vê e o percebe.
        Antes de relatar qualquer expressão sobre o preconceito ou bullying, entenderemos como o mesmo se constrói através da estigmatização do indivíduo por meio de signos. Os sinais ou signos eram utilizados desde os tempos mais remotos. Guerreiros que fracassavam na guerra tinham seus corpos pintados com sinais depreciativos, que os identificavam como incapazes, fracos e desonrosos. De modo semelhante, o guerreiro que vencia a guerra também era pintado, porém com sinais que o remetiam a forte, corajoso e capaz. Perpassando os anos, percebemos que ainda se fazem presentes os signos que objetivam classificar os indivíduos da sociedade. Quando atribuímos o sinal de descrédito ou algo que precisa ser melhorado à gordura excedente no corpo, criamos uma classificação de inferioridade e de anormalidade para com as pessoas que possuem essa característica. Assim construímos grupos sociais – a classe dos obesos –  e atribuímos aos mesmos o senso de que algo, simbolicamente, precisa ser modificado e/ou melhorado, surgindo então o estigma através do sinal corporal de excesso de gordura.5
         O estigma da gordura foi tratado na literatura recentemente por Mattos.22,23 O autor constatou que pessoas obesas se auto- compreendem como estigmatizadas ou porque não conseguem realizar atividades cotidianas com a mesma funcionalidade e praticidade que as demais, ou porque são motivos de brincadeiras, chacotas, chistes onde quer que estejam, em virtude de sua aparência destoante.
       Não estamos negando que exista a necessidade de nos atentarmos à obesidade. Apesar de não existir ainda uma clara relação definitiva entre a obesidade e o risco de morte, tal distúrbio geralmente vem atrelado à hipertensão arterial, diabetes e dislipidemia, trazendo riscos para a saúde. Isto é, a obesidade é considerada um fator de risco para diversas morbidades.24-29
      No entanto, o homem não vive limitado à realidade dos acontecimentos sociais ou da saúde. Existem esquemas representativos inerentes a cada indivíduo. Em outras palavras, cada um vive e constrói teias de relacionamentos, moldado por autoconceitos e pelo processo de vivência com o outro, que extrapolam o visível e o compreensível, na tentativa de se representar através de imaginários que são criados por meio de ideais, pensamentos, emoções, entre outros. Esses ideais muitas vezes fogem do alcance de terceiros que tentam entender esse fenômeno através de olhares que não alcançam a magnitude da representação simbólica do ato ou objeto.30
      Assim, através do estigma representado simbolicamente por sinais de incapacidade, inferioridade, ou ainda, de anormalidade diante da obesidade, ocorre um molde na identidade social virtual relatada por Goffman.5. Dessa maneira, simbolicamente, o obeso, à frente de discursos diários ressaltando seu estigma como algo ruim, diferente, anormal, entre outros, cria um imaginário social inerente a essas classificações, reconhecendo sua identidade social como algo sem valor. Em outros termos, diante de dizeres de descrédito diários lançados à sua pessoa, o estigmatizado se reconhece, ou melhor, é convencido de que seu papel como agente social não tem valor, sendo preciso optar por duas escolhas: mudar e se tornar melhor ou continuar sendo um sujeito diferente e inferior aos demais.
     A identidade virtual deteriorada, junto ao estigma, será representada pelos provocadores do preconceito por termos próprios. Assim, um indivíduo que sofre o bullying, durante seu processo será chamado por termos que exaltem seu signo depreciativo, como “baleia”, “elefante”, “hipopótamo”. A representação simbólica desses termos perante o estigmatizado perpassa o senso de simples palavras e o representa como alguém sem qualidades sociais. Assim, surge um processo chamado de encobrimento do estigma. Nesse processo social, que objetiva a melhora do estigma, a diminuição dos casos de preconceito, ou ainda o disfarce dos signos que levam ao estigma, o estigmatizado procura meios para esconder ou curar as características que o revelam como ser inferior ou diferente.
      As estratégias mais utilizadas, mesmo não se apresentando como eficazes no disfarce dos signos, em similaridade aos estudos de Goffman,5 são: a mudança de moradia para bairros, cidades ou países onde outras pessoas não conheçam ou não possam reconhecer seus signos; a troca de documentos, sendo o mais comum a mudança do nome no documento de identidade; revelação de outro estigma de menor depreciação com o intuito de disfarçar o estigma da obesidade; isolando- se, de tal maneira que ninguém conseguirá vê-lo e assim diminuindo a possibilidade de descoberta de seus sinais.
        Apesar de atingir o estigmatizado com maior intensidade, o preconceito não alcança somente o mesmo. Diante dos sinais de desonra, o estigma da obesidade traz repercussões perante o comportamento social do obeso, causa prejuízos na saúde social e psicológica, influenciando nas relações sociais. Tal processo de estigmatização restringe algumas atividades do cotidiano, como ir à praia, conversar com amigos ou família em locais públicos. Existe uma percepção negativa de seu corpo e de sua vida que incidem no isolamento e dificuldade de interação com o outro.31
       Devido ao molde da identidade social virtual perante os constantes estigmas, o obeso constrói uma representação simbólica em que retrata o preconceito e a inferioridade em relação a si e aos outros pertencentes ao seu grupo.32
      A família possui importante papel diante do bullying sofrido pelos indivíduos portadores de obesidade. Os estigmas presentes na vida de obesos são disseminados também em ambiente familiar, sendo, dessa maneira, importante incluir todos os membros da família em programas de assistência e acompanhamento de pessoas obesas.31
         Podemos então afirmar que o bullying é um processo simbólico construído e enraizado através de signos que ressaltam a comparação e o juízo de valor negativo, criando e classificando grupos que irão interagir de maneira conflituosa nas representações sociais. Pode ser entendido, ainda, como um novo conceito que concebe ações sociais presentes há muito tempo em nossa sociedade através do imaginário social criado pelas representações comparativas e desvalorizadas – ou seja, estigmas que irão deteriorar a imagem de Ser social do estigmatizado. Isso torna o indivíduo agente sem propósito e valor social que precisa melhorar ou mudar.
      O bullying pode ocorrer na esfera do falado e no físico, com agressões que visam suscitar a inferioridade e a fraqueza. Criam-se assim prejuízos físicos, psicológicos, emocionais e sociais, que não se resumem apenas ao agredido, atingindo direta ou indiretamente amigos e familiares.
      Devemos refletir sobre o bullying nas escolas, pois é um local onde ocorre com frequência. Nansel et al.,33 em um grande estudo com mais de 15 mil estudantes, concluíram que 29,9% dos estudantes estão envolvidos com bullying nas escolas, seja como vítimas ou agressores. Os meninos são mais vítimas e mais agressores do que as meninas. Da mesma forma, os autores perceberam que alunos com idades menores podem ser muito mais cruéis do que alunos maiores.
     Um marco importante das reformas existentes é o fato de que, até o século XX, a Educação dividia e selecionava seus alunos: de um lado, estudantes de classe pobre, e do outro, com poder aquisitivo maior, chamados de burgueses. Até o momento descrito, o objetivo da escola era formar cidadãos capacitados para comandar outros indivíduos com menor poder aquisitivo. Nos tempos atuais, suponhamos que existe um grupo de estudantes cada vez mais heterogêneo e com o objetivo diferenciado: o de formar cidadãos.34
        Refletindo sobre o novo objetivo da escola, é importante relatar que o processo educacional formado porclasses cada vez mais diferenciadas, e consequentemente, com culturas divergentes, acarreta representações de vida discrepantes entre os pares participantes desse meio. A distinção do ato de perceber a vida cria comportamentos sociais diferenciados, o que torna o outro, em termos macroanalíticos, diferentes. Ocorrem então, no momento de percepção do diferente, possíveis comparações, classificações e juízos de valor perante os alunos e professores. Em sua grande maioria, essa categorização expõe o outro como alguém inferior ou menos preparado para a ação criticada pelos atores participantes. A supervalorização do ego, a necessidade de demonstrar superioridade, em meio a outros fatores, entre todos pertencentes à escola, é um modo de provocar o bullying escolar.
     A criança obesa, devido a seu estigma e consequente classificação e inferiorização, sofre constantes atos de violência na escola. Porém, o preconceito não deve ser entendido como uma construção social que se isola e se constrói somente no ambiente escolar. Existem vários fatores que, além das distorções de estereótipos construídas na escola, provocam a estigmatização do obeso – entre eles, os signos existentes em seu corpo e no ambiente familiar. Segundo Batsche & Knoff,35 pesquisas mostram que grande parte dos alunos que provocam o bullying foram criados por pais violentos.
      Em qualquer cultura encontraremos o preconceito e a violência, que, por sua vez, causam sofrimento psíquico e emocional, isolamento e dificuldade de aprendizagem. As vítimas – não é diferente nas crianças obesas –, devido a sua insegurança, não possuem coragem de pedir ajuda. Diante do estigma expelido na escola por seus supostos amigos, o indivíduo com obesidade infantil passa a se desinteressar pela escola, evitando-a e, em alguns casos, simulando doenças para não sair de casa e encontrar seus agressores.36
        Dessa maneira, temos uma relação conflituosa entre a criança e a escola. O âmbito educacional deveria ser local de formação de cidadãos para todos. Entretanto, devido à exposição do preconceito que enraíza estigmas de descrédito e deteriora as identidades sociais daquele que é exposto a esse mal, torna-se um local evitado pelas crianças que possuem o estigma, que em nosso trabalho, são os jovens com obesidade. Não existe uma solução clara e fácil para o problema do bullying referente ao obeso e a escola. Tentar a cura dos signos ou ainda seu encobrimento não é a solução para o problema. Da mesma forma, a tentativa de proibição pode não surtir efeito, e quando não pensada e organizada, aciona o ponto- gatilho para exposição ainda mais exacerbada e disseminada do preconceito.
     No entanto, apesar de não existir uma solução pronta para o combate e diminuição do preconceito, educadores, educandos, a família e a sociedade como um todo devem refletir sobre o estigma como uma construção social que é passível de ensinamento. Coslin,37 ao realizar uma pesquisa com 70 professores e 550 alunos, constatou que a violência escolar não é um problema restrito à realidade francesa, mas presente no mundo inteiro. Tal problema não será resolvido apenas com qualquer tipo de melhorias no ambiente escolar, tal qual a relação entre professores e alunos ou alunos entre si. Os cuidados e interdições parentais parecem influenciar o comportamento dos alunos na escola. O autor destaca que os pais e responsáveis têm papel fundamental na contenção da violência escolar, ainda que não presentes no cotidiano da escola.
        Lyznicki et al.38 afirmam que até os médicos têm papel relevante ao lidar com o bullying na infância, pois tanto vítimas como agressores podem revelar traços de morbidades psiquiátricas.
     Quando uma criança estigmatiza seu amigo obeso na escola, apenas está reproduzindo informações que lhe foram ensinadas pela sociedade. Assim, mesmo não existindo uma solução sólida para o problema, já que a desconstrução de uma cultura pautada no preconceito não se desmancha facilmente, é importante que, principalmente no ambiente escolar, exista a reflexão sobre o bullying, sobre o diferente, que não necessariamente deve ser melhor ou pior. Somente com a união de todos, com a reconstrução de significados simbólicos é que entenderemos que, se o preconceito é uma construção social, é passível de ser moldado ou reconstruído com significados diferenciados. Somente assim nossa escola será palco de formação de cidadãos para todos, sem exceção.


         Considerações finais

     O objetivo deste artigo foi identificar as representações simbólicas do bullying atribuído às crianças e aos adolescentes que apresentam obesidade. Assim, diante o exposto, podemos dizer que uma das representações encontradas é que os jovens obesos são desconsiderados por conta de sua aparência e qualificados moralmente responsáveis por ela. Daí surgem dois grandes problemas: o primeiro é o deslocamento da obesidade e de seus níveis do campo da saúde para o campo moral, pois o obeso é antes de tudo acusado de ser preguiçoso, indisciplinado, sem “força de vontade” ou coisas do gênero. O segundo é que, ao reduzir a obesidade como responsabilidade única do sujeito, individualiza-se a obesidade e se aliena esse problema epidêmico mundial da responsabilidade do Estado, no qual meios de comunicação de massa têm enorme influência e também responsabilidade na formação de opiniões e hábitos. A obesidade é um problema de saúde pública, e não uma irresponsabilidade alimentar do sujeito ou mesmo carência de atividade física regular, ainda que não se possa prescindir de tais questões para se pensar a saúde de maneira multidisciplinar.
       A violência simbólica não necessariamente possui efeitos imediatos. Uma humilhação, uma exposição indevida de um sujeito diante de um grupo pode no dia seguinte não ter nenhuma repercussão prática por parte do humilhado ou do ofendido. Isso não significa dizer que tal situação não tenha sido internalizada e que tais repercussões não irão se manifestar de alguma maneira e em algum momento em sua vida, uma vez que nada escapa às experiências humanas e aos sentidos que atribuímos a elas.
     A escola é um lugar de socialização e de inclusão dos sujeitos em relação aos diversos conhecimentos que se encontram disponíveis no mundo da vida de maneira institucionalizada. É dever e responsabilidade do Estado assumir o processo de formação dos sujeitos nesse espaço. Portanto, não é possível que a escola se coloque passiva, intimidada ou não sabendo o modo como reagir diante da estigmatização que muitas crianças sofrem no âmbito de ensino. Não é possível mais tolerar que as diferenças de gênero, de etnia ou morfológicas sejam motivos para serem objetos de desqualificação e de escárnio na escola. Ou seja, não se pode mais permitir que as diferenças sejam tratadas como  desigualdades.
     O Brasil é um país miscigenado por natureza. Nossa formação é de índios, negros e brancos oriundos de Portugal, Itália, Alemanha e outros países. Desta mescla nasceram mestiços, que somos nós. Acolher a diferença e respeitá-la é um ato de valorização da própria identidade nacional. Não podemos esquecer que o maior genocídio da história da Humanidade começou com uma propaganda de uma caricatura de um judeu “narigudo” e acabou com a morte de milhões pela câmara de gás.


         Referências

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